(por Marcio Freitas)

Essa hora da noite é assustadora, quando a humanidade inteira sua nos lençóis, quando milhares de pessoas, na mesma hora, arrotam, blasfemam, batem os dentes, suspiram com os olhos fechados, fazem digestão, fazem digestão, arranham a garganta, a boca grande virada para o teto. Eles bem que têm razão de se fechar no quarto para dormir. Todo homem deveria carregar, a cada dia, a vergonha de sua noite passada, a vergonha do abandono do sono. (p. 76)

Este texto parte de um percurso pela dramaturgia de Bernard-Marie Koltès, com o objetivo de apontar uma tensão reiteradamente tematizada em suas peças, em relação ao conceito de humanidade. O discurso de seus personagens parece oscilar permanentemente entre dois pólos: o primeiro associa o humano a tudo que é da ordem da cultura, ao que é civilizado, ou seja, pertinente a uma esfera de construção racional; o segundo pensa o humano próximo do animal, ressaltando suas qualidades instintivas, arredias ao controle, qualidades que mantém vínculo tanto com a agressividade – com um mundo selvagem em oposição a outro civilizado, no qual o homem pode e deve se utilizar da força física contra o outro homem – quanto com a sexualidade – com as necessidades de aproximação física e de fricção entre os corpos, que objetivam o prazer ou apenas a satisfação do desejo instintivo, e não necessariamente obedecem a regras de conduta pré-estabelecidas.

Em suas peças, ao propor situações diversas de combate entre homens, Koltès coloca sempre duas possibilidades de ação: o combate físico, a ação que parte em direção à mutilação do corpo daquele com quem se briga, e a argumentação verbal, entre homens que, por pertencerem à sociedade civilizada, se utilizam dos recursos da retórica, da construção cultural da linguagem, para tentar chegar a soluções para seus conflitos. Esta análise da dramaturgia do autor – das peças para teatro traduzidas para o português por Letícia Coura: Combate de negro e de cães, O retorno ao deserto, Roberto Zucco, Na solidão dos campos de algodão e Tabataba – não observa uma tendência no autor de valorizar um ou outro modo de agir; em contrapartida, sua obra apresenta um permanente tensionamento entre esses pólos, um incessante movimento pendular, que questiona esse duplo caráter do comportamento humano sem tomar partido, ou achar uma solução para o conflito. Sua dramaturgia aponta questionamentos; talvez seja essa a única forma de pensar num possível acordo, numa convivência tolerável entre os homens, que, por sua vez, não chega a se concretizar no teatro de Koltès.

A noite

Na citação inicial, retirada da peça O retorno ao deserto, a noite é percebida pela personagem Mathilde como um momento propício a que certos comportamentos do homem venham à tona. A listagem que verbaliza para justificar seu receio, seu medo, apresenta uma série de ações associadas ao funcionamento do organismo, algumas delas ações involuntárias, outras associadas à livre fruição desse corpo, sem a interdição de regras do bom costume. Na mesma cena, a personagem complementa: “Pra que serve que eles se vistam como burgueses durante o dia, ao passo que metade de suas vidas eles passam esticados como porcos na lama, inconscientes, sem controle sobre eles mesmos” (p. 76). Seu receio, portanto, deve-se à falta de controle, à falta de consciência intrínseca ao sono (em específico) e aos comportamentos que são similares ao sono por permitirem certa liberdade e abandono dos costumes. A noite é vista pelo Dealer de Na solidão dos campos de algodão como a hora “que é aquela das relações selvagens entre os homens e os animais” (p. 91), ela é o momento “do esquecimento, da confusão, do desejo tão esquentado que se torna vapor” (p. 100). Enquanto o discurso de Mathilde aponta para a inconsciência, o Dealer fala da noite despertando o animal selvagem – similarmente, ela é um momento de abandono de certas características da civilidade. O Cliente, nesta mesma peça, faz uma associação específica à escuridão da noite, contrapondo-a ao espaço onde há luz: “essa luz, lá no alto, no alto do prédio, da qual se aproxima a escuridão, continua imperturbavelmente brilhando; ela fura essa escuridão, como um fósforo aceso fura o pano que pretende asfixiá-lo” (p. 92). A luz funciona, em seu discurso, como um resgate de civilidade; a eletricidade parece iluminar algo que deve estar claro – tanto no sentido de ser visível, de não estar escondido, quanto no de pertencer a regras pré-estabelecidas e conhecidas por todos: “Meu próprio comércio, eu o faço nas horas homologadas do dia, nos lugares de comércio homologados e iluminados com luz elétrica” (p. 93). O dia está associado à homologação, às regras. Já em Tabataba, a noite aparece justamente como um momento de socialização, de convívio: “Por que você não sai de casa, à noite, quando todos os garotos da sua idade já estão na rua, à vontade, com o vinco da calça bem passado, andando em volta das meninas?”, pergunta Maïmouna, ao que o irmão caçula Petit Abou responde: “desde que começa a anoitecer, eu não gosto mais dos meus amigos” (p. 49). A irmã reivindica que o irmão esteja limpo e com as roupas passadas, portanto sociável, mas para que execute ações que despertem seu lado mais instintivo, menos regrado: “vá tomar uma cerveja com os seus amigos e depois, vá ver as putas”, pois essa é a hora “em que você deveria estar na rua se esfregando nas vizinhas” (p. 50). O lugar da bebedeira e da sexualidade, do descontrole, neste caso, também é o lugar da homologação – é o lugar do dever social, da afirmação do papel do homem perante os outros, pois “Tabataba está inteira na rua, você não tem o direito de me trancar na minha vergonha”.

A lama

Na recusa do caçula Petit Abou, há uma referência explícita à degradação do lugar para o qual a irmã deseja que ele vá: “Eu não quero andar nas ruas de Tabataba, elas são cheias de bostas de cachorro” (p. 49). Da mesma forma, o Cliente de Na solidão dos campos de algodão refere-se ao espaço em que se depara com o Dealer como um depósito de todo o “lixo jogado pelas janelas”, sublinhando a separação entre o espaço no alto dos edifícios de apartamentos – “quanto mais no alto se mora, mais o espaço é são” – e o espaço podre da rua pública – “quando o elevador te deixou embaixo, ele te condena a andar no meio de tudo isso que não quisemos lá em cima, no meio de uma pilha de lembranças podres” (p. 92). Se o Cliente evita a podridão projetando-se para o alto, Petit Abou passa o dia inteiro no “pátio interior”, um espaço que pode receber a luz do dia, que se projeta para fora, mas que permanece separado no interior da casa. Há certa equivalência desse espaço com os jardins murados da casa de família em O retorno ao deserto. O jardim é uma espécie de simulação do espaço exterior, que supre a necessidade de que se passe para o lado de fora. Quando Mathieu afirma ao pai, Adrien, que deseja sair de casa, esse responde: “Tudo bem, então vai, vai, dentro dos limites desse jardim” (p. 60). Ao resmungo do filho – “eu não conheço o mundo” – o pai tem uma resposta pronta – “O mundo é aqui, meu filho, você o conhece perfeitamente bem, você passeia por ele todos os dias e não há mais nada para conhecer. […] Viaje do seu quarto até a sala, da sala até o sótão, do sótão até o jardim”. No discurso de Adrien, há a mesma associação do lado de fora dos muros, da rua, com uma idéia de selvageria: “Pra lá desse muro, fica a selva, […] aqui temos tudo que um homem deseja. […] é preciso ter a cabeça virada, preferir a miséria à opulência, a fome e a sede em vez da fartura, o perigo e o medo à segurança” (p. 61). Curiosamente, dentro dos próprios limites do muro, o jardim compartilha de alguns perigos do exterior, pois, à noite, na escuridão, ele apresenta problemas para o controle rígido desse mundo supostamente separado. Mathilde adverte a filha Fátima, para que preserve sua castidade: “Fátima, eu não quero que você fique andando à noite nesse jardim. Fátima, eu mesma, no passado, andava por ele, e uma noite eu fiquei andando demais, e isso deu no seu irmão, e eu nem cheguei a ver a cara daquele que me fez esse presente” (p. 70).

A loucura

Da mesma forma que Adrien se refere à “cabeça virada” de seu filho Mathieu por desejar ultrapassar os muros, Adrien acusa a sobrinha Fátima de loucura, devido às suas deambulações pelo jardim à noite. Há um padrão, no discurso de alguns personagens das peças analisadas, de associação da loucura aos comportamentos que privilegiam a ordem do instinto, associando a civilização humana à idéia de racionalidade. Em Na solidão nos campos de algodão, o Cliente sugere que, “a esta hora e nestes lugares”, o homem precisa bater no outro antes de perguntar, afirmando, como justificativa: “eu não sei se era sua intenção bater em mim, por uma razão insana e misteriosa” (p. 95). A motivação do instinto animal, de agredir o desconhecido, é associada pelo Cliente à insanidade e à falta de clareza; quanto à atitude que defende para si, de atacar antes para se proteger do ataque do outro, ele afirma que “a minha razão, se é insana, ao menos não é secreta”. Ou seja, o que torna o instinto perigoso, verdadeiramente insano, é o fato de que ele não revela suas motivações: suas intenções não podem ser explicadas ao outro num discurso coerente e racional, e, por isso, merecem ser classificadas de loucura. O problema, acompanhando o discurso desse personagem, é sua natureza desconhecida, impossível de ser catalogada ou convertida em uma forma de inteligibilidade mais afeita à civilização do pensamento científico e racional. De fato, grande parte da resistência do Cliente em suprir as demandas do Dealer, grande parte de sua dificuldade em confiar nas declaradas boas intenções do Dealer, deve-se à sua própria impossibilidade de racionalizar a situação: “porque não tem razão para que eu te encontre aqui nem razão para que você cruze por mim aqui nem razão para a cordialidade nem valor razoável para nos preceder e que nos dê um sentido” (p. 102). O sentido que o Cliente busca não pode ser encontrado – o que não significa que não haja um sentido escondido, mesmo inconsciente, nessas ações; o problema é que ele não se dá à análise.

Em Roberto Zucco, a loucura é citada por diversos personagens em função de uma necessidade de catalogar o personagem título, para, assim, classificar como doença ações cujas motivações não se dão à inteligibilidade comum. A mãe, pouco antes de ser morta, afirma: “Por que essa criança, tão sensata durante vinte e quatro anos, ficou louca de repente? Como você saiu assim dos trilhos, Roberto?” (p. 23). Da mesma forma, uma puta refere-se às suas ações que fogem da inteligibilidade com a simplicidade de um rótulo: “Ele está louco, só isso. É melhor deixá-lo tranqüilo” (p. 31). Contudo, Roberto Zucco não é um delinqüente qualquer, ele recorda de suas aulas de lingüística, é um estudante universitário que virou assassino. Similarmente ao Mathieu de O retorno ao deserto, parece ter havido uma espécie de chamado a Zucco para que atravessasse a murada que separa a casa da rua, o claro do escuro, a civilização da selvageria. A transição que o afasta do espaço de civilidade, do espaço da cultura, parece surpreender o próprio personagem. Ao ser indagado por qual motivo repete seu próprio nome em voz alta, Zucco responde que “Eu o vejo escrito no meu cérebro, e cada vez menos bem escrito, […] como se ele fosse se apagando; é preciso que eu olhe cada vez mais perto para conseguir ler. Eu tenho medo de ficar sem saber meu nome” (p. 41). O espaço da leitura, da significação, do sentido – em sua instância de inteligibilidade comum, em seu potencial de ser socializável, compartilhado – vai se apagando com a transição, “Aliás eu estou ficando louco, agora”. Ao mesmo tempo, o discurso de Zucco aponta para a banalidade dessa transição, para seu caráter regular, comum, natural, oposto ao excêntrico ou fora da regra: “Olha todos esses loucos. […] São uns assassinos. […] Ao menor sinal na cabeça deles, eles começariam a se matar uns aos outros. Eu me pergunto porque o sinal não soa, aqui, agora, na cabeça deles”. De fato, ao final do texto, em sua fuga da prisão, ele afirma que “É normal, matar os próprios pais” (p. 45), desassociando suas ações do discurso oficializado da loucura, como se houvesse nelas algo que, embora difícil de ser compartilhado, fosse natural ao homem. O diálogo final entre os policiais, paradoxalmente os representantes da lei, parece corroborar essa tese: “SEGUNDO POLICIAL – Um assassino é louco por definição. / PRIMEIRO POLICIAL – Nem sempre, nem sempre. Tem vezes que eu quase tenho vontade de matar; eu também” (p. 44).

A natureza

Em vários trechos das peças analisadas, a natureza aparece associada a esses chamados instintivos, tanto no que se refere a ações de agressão contra outros homens – como no caso de Zucco – quanto em relação ao chamado da sexualidade. Em O retorno ao deserto, Adrien comenta, algo ironicamente, o comportamento da irmã, Mathilde, acusada de passear nua pela varanda: “Desde pequena que essa menina comete erros, é o chamado da natureza; ela não vai, por milagre, se transformar numa dama” (p. 65). Mathilde não teria feito, segundo o irmão, a transição da natureza para a sociedade. Em Tabataba, Maïmouna acusa o irmão justamente do contrário – “quem você pensa que é, seu merdinha, pra pensar que você pode desafiar a natureza? […] Até as pedras formam casais entre elas, você não vai escapar disso” (p. 50). A natureza, no discurso da irmã, está associada à sociabilidade: o ser social, contrastando com o discurso de poder em O retorno ao deserto, é aquele que pode exercer sua sexualidade aos olhos da sociedade. Contudo, nenhum dos dois irmãos sai às ruas de Tabataba para fruir dessa sexualidade – ambos permanecem fechados em casa. Petit Abou afirma: “eu gosto desse velho pátio e dos velhos e das cabras” (p. 49). O velho parece fazer oposição à vida – “Mas e a vida Abouzinho? Tudo que eu te ensinei, a mulher, o homem, o amor, essa zona toda?” (p. 51) – como se no velho estivesse desgastado o chamado à vida, o chamado natural à rua. O Cliente, em Na solidão dos campos de algodão, teme justamente tudo que está associado a essa natureza, distante da civilização que ele bem conhece – “eu tenho razão em acreditar que toda luz natural e todo ar não filtrado e a temperatura das estações não corrigida faz o mundo ficar arriscado; pois não há paz nem direito nos elementos naturais” (p. 94-5); o artificial, a construção – a organização da sociedade civilizada em geral – objetivaria, segundo esse discurso, uma fuga do risco, uma busca da estabilidade e do controle. A natureza deveria ser domada, para que o homem não ficasse suscetível nem ao desejo incontrolado nem à violência injustificada.

O instinto

Em Combate de negro e de cães, o autor apresenta um espaço de ação similar ao jardim de O retorno ao deserto: rodeado por cercas que o separam da selvageria do mundo de fora, que engendram um espaço de civilização dentro do caos, que simulam a França civilizada no meio da África selvagem. O canteiro de obras africano tem, igualmente, torres de vigias, que, assim como as janelas altas da casa de família, lançam um olhar protetor sobre o espaço a céu aberto. A noite, porém, complexifica esse espaço separado. Ela propicia o despertar do instinto no homem. O engenheiro Cal, empregado francês desse canteiro, tematiza repetidamente essa instância comportamental instintiva. Quando se refere ao negro, empregado subjugado a ele que teria matado num acesso de fúria, afirma: “Quando eu o vi, eu disse pra mim mesmo: esse aí, eu não vou poder deixá-lo em paz. O instinto, Horn, os nervos” (p. 114). Assim como Roberto Zucco, ele indica no histórico de sua vida um interesse pela possibilidade de compreender o mundo através da teorização, do pensamento abstrato, da organização da linguagem: “Olha só, eu era louco por filosofia, você pode acreditar […] Mas de tanto pensar, pensar, pensar sempre sozinho, a gente acaba sentindo as idéias estourarem dentro da cabeça, uma a uma” (p. 121). Ele indica uma passagem progressiva a um outro estado, atribuída à sua estadia na áfrica – “Aqui a gente se transforma quase em selvagem; eu sei; é que é o avesso do mundo, aqui” (p. 122) – e mais uma vez define sua personalidade, no diálogo com a francesa Léone, como instintiva, desta vez em função da sexualidade – “Mas a gente não vê mulher aqui, desde o início da construção; […] isso me perturbou, te ver; eu adoraria ser diferente […]. Mas como eu sou não é como eu gostaria de ser. […] Eu tenho o instinto, para as mulheres”. O personagem é caracterizado, ainda, por sua relação de proximidade com um cão, Toubab – “eu só tenho o meu cachorro, ninguém me escuta” (p. 112). Em sua primeira aparição na peça, Cal afirma que “Desde que ele [o cão] é bem pequenininho, dorme em cima de mim; o instinto o fazia sempre voltar pra mim” (p. 113). Porém, o instinto que os aproximava, os afastou: o cão o teria abandonado no momento do assassinato do negro. Segundo sua descrição dos momentos precedentes ao evento, “o cachorro levanta o focinho, levanta os pêlos; ele sente o cheio da morte; isso o excita, pobre animal” (p. 112). A capacidade de significar pelo cheiro é qualificada por ele, mais à frente na peça, como uma das características positivas do instinto: “quando se conhece o cheiro, se conhece as pessoas; e também, é prático, a gente reconhece as coisas de cada um, tudo fica mais simples, é o instinto e pronto” (p. 118). Com a morte de Cal, ao final da peça, o cadáver do cão aparece em cima do cadáver do homem, reforçando a associação entre as duas figuras.

O animal

Em Roberto Zucco, a menina é repetidamente referida pelos irmãos pelo nome de um pássaro – “pardalzinho”, “pintassilgo”, “rolinha” –, associando sua figura a certa beleza, pura e delicada, aos pássaros domésticos que precisam ser protegidos em gaiolas para que não levantem vôo e se entreguem à selvageria da natureza. E é justamente o que acontece: a menina perde a virgindade com Zucco e é expulsa da esfera familiar protetora, vendida a uma casa de prostituição, como se tivesse feito a passagem da civilidade ao instinto. Sua irmã discursa: “Eu a protegi e a coloquei dentro de uma gaiola sempre limpa para que ela não sujasse sua brancura imaculada ao contato com a sujeira desse mundo, com a sujeira dos machos, para que ela não se deixasse empestear pela peste do cheiro do macho” (p. 43). O macho é o homem visto por seu potencial sexual – percebido não em sua inteireza, mas na associação com a sexualidade, rebaixado às suas características de animal. Maïmouna, em Tabataba, também se refere ao irmão como possuidor de “crostas de sujeira nas mãos e cheiro de bicho” (p. 49). A animalidade fica, mais uma vez, associada à sujeira, ao cheiro forte – cheiro que significa enquanto signo reconhecível pelo instinto animal, mas que não é decodificado pelo homem, restando apenas seu caráter repugnante. Em O retorno ao deserto, Adrien associa sua própria condição humana à brutalidade do animal, justificando assim a necessidade de proteger e enjaular sua cria: “Talvez eu esteja, como todo mundo, à meia distância entre o macaco e o homem. […] Eu não queria que esse filho de macaco visse a floresta e os insetos e os animais selvagens […]. Os macacos mais felizes são aqueles que são criados em jaulas, com um bom vigia, e que morrem acreditando que o mundo inteiro parece com a sua jaula” (p. 68). A animalidade que enxerga no seu macaco é aquela do instinto de mutilação do outro – “Eu sou um macaco agressivo e brutal” (p. 69) –, associando o lado de fora da casa à selva e à guerra, que o circunda mas que ele insiste em não tomar parte: o seu instinto de macaco deve ser a todo custo apaziguado. O Dealer, de Na solidão dos campos de algodão, verbaliza o seu esforço consciente de domar o cavalo que é inerente à sua condição:

Você faz o possível para enfiar um espinho embaixo da sela do meu cavalo para que ele se irrite e dispare; mas, se meu cavalo é nervoso e às vezes indócil, eu o mantenho com uma rédea curta, e ele não dispara tão facilmente; um espinho não é uma lâmina, meu cavalo sabe a espessura de seu couro e pode se adaptar à coceira. No entanto, quem conhece completamente os humores dos cavalos? (p. 93-4)

Esse couro espesso é o que parece separar o homem civilizado do animal – a possibilidade, ainda que limitada, de controle do chamado do instinto, de re-elaboração do desejo – do desejo sexual ou do desejo de agredir o outro – em alguma criação cultural que não seja ação física, direta, de satisfação desse desejo.

O cão é o animal mais recorrentemente mencionado nas falas dos personagens de Koltès. Isso se deve, provavelmente, ao lugar de trânsito que ocupa no imaginário coletivo: ao mesmo tempo em que é um animal que pode ser preso e domesticado, mantido como companheiro próximo do homem, o cão tem uma instância instintiva que é prontamente despertada, tanto em função de atacar um estranho, quanto em resposta a estímulos sexuais de outro animal ou de seu próprio corpo. Há um esforço de civilização comum dedicado a este animal, no sentido de trazê-lo para uma esfera do afeto – a resposta do animal é sempre perceptível, sua dedicação e fidelidade aos donos são plenas; em contrapartida, seus acessos de raiva ou de satisfação sexual não obedecem a leis plenamente discerníveis pela cultura. A proximidade que o homem usualmente dedica a tal animal, aliada ao mistério de suas explosões, fazem dele uma figura rica para refletir, de alguma forma, a relação da civilidade com o instinto no próprio homem. Em Roberto Zucco, o fortão afirma que “Os cachorros são os únicos seres em que você pode confiar. Eles gostam de você ou não, mas eles nunca te julgam. E quando todo mundo tiver te abandonado, garoto, vai ter sempre um cachorro por aí pra te lamber os pés” (p. 33). Se são confiáveis, são também imprevisíveis, e a menina afirma que “eu vejo muito bem, na rua, os cachorros me seguindo com a língua de fora e com aquela baba na boca. Se eu deixasse eles meteriam os dentes, como se estivessem num açougue” (p. 39). Em Na solidão dos campos de algodão, o Cliente reafirma sua resistência em relação ao gesto amistoso do Dealer em função de um “olhar do cachorro”, que “não contém nada além da suposição de que tudo, em volta dele, é cachorro com toda certeza” (p. 100). Sob esse olhar, tudo é perigo de explosão, sem que seja possível prever. O Dealer, por sua vez, sob sua constante reafirmação de civilidade, adverte o Cliente quando este sinaliza que vai se retirar antes da conclusão da transação: “Nós nos encontramos aqui para o comércio e não para a batalha, […]. Você não vai partir como um ladrão com os bolsos cheios, você esquece o cachorro que guarda a rua e que vai te morder o cu” (p. 102). As coleiras estão puxadas, o movimento é o de civilidade – mas a sugestão do cachorro, como metáfora, implica na instabilidade, na eminência de uma reação instintiva que não obedece à razão.

A ação

Em Na solidão dos campos de algodão, o instinto não chega a aparecer fisicamente concretizado – embora o texto organize uma situação propensa ao afloramento de atitudes instintivas, propensa à liberação da agressividade, a tensão se mantém até a última palavra, e, de fato, o Cliente e o Dealer não saem, em momento algum, da esfera do diálogo. Há apenas a menção a um breve toque entre os corpos, o Dealer teria encostado a mão no braço do Cliente antes do início do diálogo, e nenhuma outra ação física fica concretamente indicada. Em certo momento, o Dealer afirma: “eu me esforço […] em ficar no limite do que é conveniente, evitando o inconveniente como uma criança deve evitar se pendurar na beira do telhado antes mesmo de compreender a lei da queda dos corpos” (p. 98). Em Combate de negro e de cães, o paralelo entre ação física e discurso pode ser percebido no contraste declarado entre Cal, personagem já citado, e Horn, o chefe do canteiro de obras. Horn afirma: “Não é só com tiros de revólver que a gente se defende, na vida, meu Deus. Eu sei servir da minha boca; eu sei falar e me servir das palavras. […] Você, você só sabe resolver os negócios com tiros de pistola […]. É então a atirar que se aprende nessas suas escolas de engenheiros, e vocês esquecem de aprender a falar?” (p. 127). A fala é, aqui, a maneira de manter a civilidade, de ater-se ao conveniente; a pistola é um mecanismo de ferir o outro, um escape para o instinto agressivo. Mais à frente na peça, quando a discórdia entre Cal e Horn se acentua, Cal afirma: “Agora eu me sinto cheio de novo, eu me sinto quente, velho”, ao que Horn responde: “Não se deixe dominar pelos nervos, meu rapaz. É preciso resolver as coisas a frio, […]. Pra que serviria, fazer primeiro correr sangue, se as coisas podem se arranjar sozinhas?” (p. 131). Mas Cal está quente, ele fareja tanto o “cheiro de mulher” quanto o “cheiro de negro”, e mesmo o cheiro da natureza, “cheiro de samambaias que reclamam”. Horn está velho, seu instinto está frio, apagado. Cal, por fim, afirma: “eu sou um homem de ação, eu; você, você fala, fala, você só sabe falar”; e ainda: “eu sou pela ação, eu, eu sou um homem. Quando você tiver acabado de falar, velho, quando você tiver acabado, Horn…” (p. 132). A oscilação que define a humanidade nos textos de Koltès parece estar sintetizada na relação entre esses dois personagens. Cal é o homem que libera e Horn o homem que filtra a partir da fala. Essa linha oscilante de tensão pode ser observada, em diferentes graus, nos diversos personagens centrais do recorte dramatúrgico aqui analisado. Roberto Zucco parece estar progressivamente abandonando a palavra em função da ação física e silenciosa sobre o mundo. Os irmãos Adrien e Mathilde também se agridem fisicamente, como indica a rubrica, mas utilizam a palavra como uma arma igualmente potente. A empregada da casa dessa família, Maame Queuleu, afirma exaltada:

Arranquem a pele, se arranhem, matem-se de uma vez, mas calem a boca, […]. Porque vocês brigam só com palavras, palavras, palavras inúteis que fazem mal a todo mundo, exceto a vocês mesmos. […] briguem em silêncio, e que a gente não sinta as feridas […]. Porque as suas vozes ficam a cada dia mais fortes e mais esganiçadas, elas atravessam as paredes, elas fazem o leite entornar na cozinha. (p. 66)

O discurso ganha, assim, materialidade, potencial de ação física e de destruição – ele não é apenas contenção cultural, ele não apenas apazigua a fúria. Ele também ataca, também fere, assim como a pistola ele também é arma. Quando o Dealer segura as rédeas do cavalo, tal metáfora sugere uma restrição da fisicalidade de seu corpo de animal, mas também implica numa contenção da força de suas palavras: “Se eu afrouxasse ligeiramente a pressão dos meus dedos e a tração dos meus braços, minhas palavras desmontariam a mim mesmo e se jogariam em direção ao horizonte com a violência de um cavalo árabe que percebe o deserto e que nada mais pode frear” (p. 94). O fato de Na solidão dos campos de algodão ser uma peça sem rubricas, diferentemente das outras peças aqui analisadas, talvez aponte justamente para a rigidez do controle do gesto e do movimento, para o potencial desconcertante do uso da palavra. A pergunta final – “Então, qual arma?” (p. 104) – esgota as possibilidades da extrema elaboração formal do discurso de gerar um acordo, um deal. O que vem depois talvez não seja representável, pois não é da ordem do discurso, não é teatral – não é controlável como o é o teatro. O teatro é também limite, pois é exposição da linguagem, é construção. Koltès não parece almejar a representação do irracional, mas dispõe o discurso daquele que ainda pode formalizar suas ações em palavras, que é inevitavelmente civilizado, que compartilha com o espectador as glórias e limitações de pertencer ao mundo da razão, do limite, da ordem. A dramaturgia de Koltès não propõe um caminho positivo para o instinto no mundo social, nem tampouco se encaminha para o desmonte da linguagem; mas aponta para a afirmação dessa linguagem mesma como limite, como única possibilidade de compartilhamento. Se a palavra é a única arma, talvez sua dramaturgia aponte também para a desfuncionalidade dessa arma – ainda que utilizada na plenitude de seus arranjos formais –, para sua impossibilidade de concretizar acordos entre os homens.

Referência Bibliográfica

KOLTÈS, Bernard-Marie. Teatro de Bernard-Marie Koltès: Roberto Zucco, Tabataba, O retorno ao deserto, Na solidão dos campos de algodão, Combate de negro e de cães. Trad. Letícia Coura. São Paulo: Hucitec, 1995.

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