(por Mariana Barcelos)


O CLIENTE: Você é um bandido estranho demais, que não rouba nada ou demora demais a roubar,um ladrão excêntrico que entra à noite no pomar para balançar as árvores, e que vai embora sem levar as frutas.

Este trabalho tem como objetivo discutir a relação que se dá entre os personagens – O Dealer e O Cliente – de Na Solidão dos campos de algodão,de Bernard-Marie Koltès. Abordarei preferencialmente a questão do desejo, que é, no texto, o elemento que faz com que os dois permaneçam se relacionando. Apresentando-se inúmeras vezes nas falas – como tema em discussão, e até como um ponto para onde a conversa sempre retorna –, o termo possui classificações que variam: ora como verbo (“o que você deseja…”), ora como substantivo (“o seu desejo”). Este último vem sempre acompanhado de uma indagação implícita, uma tentativa de dizer que por trás do desejo haveria, teoricamente, um objeto para satisfazê-lo. Desejar, neste caso, indicaria a existência de um objeto do desejo, de algo que é desejado. O que se pretende concluir é que, possivelmente, o objeto seria o próprio desejo, sem que haja nenhum componente externo que justifique sua vivência.

Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Como criar para si em corpo sem órgãos, defendem a idéia da autonomia do desejo, sem que este esteja associado a um prazer que se sente com uma conquista, ou com o preenchimento de um espaço que se supõe vazio, ou ainda, com uma espécie de satisfação que se alcança quando se consegue o objeto: “A renúncia ao prazer externo, a sua postergação, seu distanciamento ao infinito, dá testemunho, ao contrário, de um estado conquistado no qual ao desejo nada mais falta, ele preenche-se de si próprio e erige seu campo de imanência” (Deleuze e Guattari, 1999: 17-8). Ou seja, o desejo, ligado à concepção ou à idéia de um corpo sem órgãos, como teorizada por Deleuze e Guattari, é um impulso liberto de valores extrínsecos. O desejo se basta e se pretende infinito. O desejo por desejar, o desejo que não quer acabar. Isto cria um caminho circular que dá ao desejarum lugar de constância, e de permanência.

Em um espaço e um tempo distantes de uma realidade lícita (com regras, leis, etc.), vemos personagens com nomes que, além de apresentar (pelo artigo definido que vem sempre antes do nome propriamente) duas classes que são naturalmente opostas, mas que ao mesmo tempo são dependentes, ainda determinam duas funções específicas –  O Dealer, alguém que vende; e O Cliente, alguém que compra. Em um cenário aparentemente perfeito, que foi escolhido pelo autor, para que uma transação comercial ilícita se realize (independentemente do porte de tal transação), duas pessoas se enfrentam com a linguagem, sem que se conclua um acordo, ou uma venda. Venda essa que seria, teoricamente, definidora do conflito que levaria os dois homens àquele lugar, àquela hora. O que se sabe, do início ao fim da peça, é simplesmente que um deseja vender, e quer descobrir o desejo de compra do outro, que se recusa admitir que possui um desejo de comprar algo específico. É pelo comportamento do Cliente que se começa a enxergar uma não vontade de satisfazer um desejo (ou uma vontade precisa de não dar satisfação a esse desejo). É a atitude do Cliente que explicita que a peça trata de um não objeto do desejo ou de um desejo que não pode ter objeto específico.

Apesar de ser um comprador, o personagem diz sequer saber o que gostaria de comprar – “Mas não, a perturbação deste lugar e desta hora me faz esquecer se eu já tive algum dia algum desejo do qual eu pudesse me lembrar […]” e pede para que a ele sejam mostradas as mercadorias, para que assim tente identificar seu desejo. Em princípio, O CLIENTE acha que não desejanada, e mesmo assim, não vai embora dali. Há até uma tentativa de se identificar o desejo em um outro meio. Por outro lado, O DEALER que é um vendedor não oferece nada ao seu cliente, diz não poder mostrar as suas ofertas, porque muito tempo seria perdido com essa ação. O que ele quer é o esclarecimento do desejo do outro para que assim possa saciá-lo, e não mostrar as opções:

[…] que eu não te digo o que possuo e te ofereço, pois não quero ter de suportar uma recusa […]. E que venham me dizer: digamos que alguém tenha um desejo, que o confesse, e que você não tenha nada para satisfazê-lo? Eu direi: eu tenho o que eu preciso para satisfazê-lo; […] E que me digam: suponhamos que no fim das contas esse desejo seja tal que absolutamente você não queira nem ter idéia do que é preciso para satisfazê-lo? Bom, mesmo não querendo, apesar disso, eu tenho o que é preciso, assim mesmo.

O quadro que se configura, agora, apresenta características que se põe em paradoxo: quem compra não sabe o que quer, pois nada é oferecido; e quem vende não oferece, pois não sabe o que o outro quer. De uma outra forma: alguém que deseja vender, alguém que deseja comprar, e que, dados os impasses, a transação torna-se impossível. O que poderia ser o fim da tentativa de negociação, e conseqüentemente, do texto, porém, os personagens não saem do lugar. O que os prenderia ali, então? Ainda em sua primeira fala o Dealer afirma: “[…] depois de ter preenchido os vazios e aplanado os montes que estão em nós, nós nos distanciaremos um do outro”. Existe a possibilidade, talvez, de o que desejam não ter, na verdade, uma corporeidade material (no caso de uma mercadoria) ou uma relação que se explique e se conclua (no caso de uma relação de compra e venda), e que, portanto, não poderiam suprir ou aplanar faltas. Esses objetos de desejo não reconhecíveis até o fim escondem, de certa forma, o desejo que não existe na falta, na ausência, em “vazios”. E não se poderia preencher um espaço que não existe. A busca por um objeto os priva de reconhecer um desejo sem expectativas talvez, de entender que o que os prende ali é um outro tipo dedesejo, que não o da recompensa. Eles passam a noite tentando entender o que desejam exatamente, desejam reconhecer o desejo, por fim, eles puramente desejam. Assim sendo, não se chega a uma resolução, mas a uma questão: “Qual arma?”, que quer dizer “Qual meio?, Qual objeto de desejo?, O que desejamos?”.

A “arma” seria uma conclusão, um objeto para que provoque um desfecho, que freie o fluxo do desejo, satisfazendo-o.

Tudo é permitido: o que conta somente é que o prazer seja o fluxo do próprio desejo, Imanência, no lugar de uma medida que viria interrompê-lo […]. Se o desejo não tem o prazer por norma, não é em nome de uma falta que seria impossível remediar, mas, ao contrário, em razão de sua positividade, quer dizer, do plano de consistência que ele traça no decorrer do seu processo. (p. 18)

desejo é fluxo, ou seja, encontrar uma “arma” viável para um entendimento não seria uma solução, mas uma interrupção. Quando se pensa em entendimento, visualiza-se uma seta diretamente ligada ao discurso, e à linguagem. Koltès expõe uma estratégia de linguagem que se identifica na repetição de uma mesma estrutura: O DEALER diz um texto extenso, verborrágico, com inúmeras metáforas, que em seguida é praticamente por inteiro comentado pelo O CLIENTE. O que se tem é uma tentativa truncada de diálogo, onde se fala muita coisa, sem sair exatamente do lugar. E este lugar que permanece é o mesmo “desejar vender” e “desejar comprar”.

Ante a tentativa de compreender a comunicação entre os personagens, surgem algumas perguntas: há uma comunicação, no mínimo, convencional, corriqueira, na qual se apresenta uma linearidade e uma continuidade no discurso? Ou, que comunicação específica seria esta que se verifica entre os dois homens na peça? Ou ainda, há uma impossibilidade de comunicação? “Acontece que existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de suas contemplações, fato que não implica em falta alguma, impossibilidade alguma […]” (p. 16), afirmam Deleuze e Guattari no texto sobre o corpo-sem-órgãos. Penso que a ênfase na impossibilidade de comunicação como tema da peça leva à presunção do oposto, a existência de uma via de possibilidade, bem como à pressuposição de que esta comunicação possível signifique, conforme o que se apresenta no texto da obra, um meio de entendimento (comunicação linear). Mas se fosse assim, seria viável em algum momento da peça o reconhecimento de um objeto do desejo, a “possibilidade da comunicação”, que, neste caso, resultaria, creio, na quebra do fluxo do desejo, que imagino que é o que a dramaturgia de Koltès enfatiza prioritariamente como possibilidade aberta nas relações humanas.

Existe na peça uma estrutura de repetições, que, em alguma instância provoca um “não sair do lugar”, que é, provavelmente, o responsável pela sustentação do desejo. A linguagem que não permite um andamento discursivo é coerente com o estado de estranheza no qual os personagens se encontram. A estranheza de um espaço “desterritorializado”, e a estranheza inerente a uma relação instantânea entre estranhos: “O DEALER: […] eu tenho a linguagem daquele que não se deixa reconhecer, a linguagem desse território e dessa parte do tempo onde os homens puxam a coleira e onde os porcos batem a cabeça contra a cerca”.

“O CLIENTE: Bom, eu te ofereço a igualdade. Um casaco na poeira, eu pago com um casaco na poeira”. Chega-se, pouco antes do fim, a um outro caminho para o entendimento do diálogo truncado que tentam desenvolver: não estão falando de oposições, eles não formam lados necessariamente opostos, o que se tem são “estados de igualdade”. Koltès provoca uma relação que, em princípio, implica em dominador e dominado – onde quem personifica cada um dos lados é uma questão relativa – e que, na dramaturgia, não estabelece, por fim, nada além de uma espécie de empate. Além de os personagens estarem em um território sem leis, sem regras, o que põe quaisquer espécies (humana ou não), como o próprio O CLIENTE menciona, em igualdade de forças. Os supostos poderes respectivamente dados a eles são anulados de certa forma quando se identifica uma unidade, ou fusão dos dois. Ou então uma igualdade de poderes que não se anulam, mas que são exemplificados em uma retórica meio simétrica, que une os dois em um ponto zero:

O DEALER: Por favor, na gritaria da noite, você não disse nada que desejasse de mim, e que eu não tivesse ouvido? / O CLIENTE: Eu não disse nada; eu não disse nada. E você, você não me ofereceu nada, na noite, na escuridão tão profunda que ela pede tempo demais para que a gente se acostume, que eu não tenha adivinhado? / O DEALER: Nada.

O ponto zero é aquele onde não se identificam “objetos do desejo”, identifica-se a necessidade de um ter o outro para que se possa desejar, identifica-se uma interdependência, que Deleuze e Guattari explicam como: “O campo de imanência [do desejo] não é interior ao eu; mas também não vem de um eu exterior ou de um não-eu. Ele é antes um Fora absoluto que não conhece mais os Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na qual eles se fundiram.”

“O DEALER: Se você fugisse eu te seguiria; se você caísse com os meus golpes, eu ficaria perto de você para o seu despertar; e se você decidisse não acordar, eu ficaria ao seu lado, no seu sono, no seu inconsciente, além.” A existência mútua, ou a coexistência, mais todos os elementos espaço temporais externos, que estão no entorno desta relação, configuram e corroboram a experiência do desejo como objeto em si, que é o desejo sem objeto externo ao impulso do desejo.


Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. 28 de novembro de 1947 – como criar para si um corpo sem órgãos. In: Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999

KOLTÈS, Bernard-Marie. Na solidão dos campos de algodão. In: Teatro de Bernard-Marie Koltès. Tradução Letícia de Coura. São Paulo: Hucitec, 1995.

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