(por Alexandre Rudáh)

Primeiras impressões

Foi o professor Moacir Chaves quem me falou pela primeira vez sobre o texto Na Solidão dos Campos de Algodão. Isso aconteceu no segundo semestre de 2007, momento em que eu cursava Direção II. Logo depois, o teórico francês Guillaume Pinçon, que estava no Brasil para realizar uma pesquisa de mestrado sobre os expoentes da encenação brasileira, colocou o texto de Bernard – Marie Koltès em minhas mãos. No entanto e não sei por que razão, optamos por trabalhar com A Gaivota de Tchéckov.

Fiquei com esse texto na cabeça e resolvi estudá-lo com o auxílio de uma professora de francês.

No início desse semestre, foi preciso escolher um texto dramaturgico que servisse de base para os trabalhos de desenvolvimento de um Projeto de Encenação para minha Prática de Montagem Teatral I enquanto aluno diretor do Curso de Direção Teatral.

Dois textos me vieram à cabeça: Vestir os Nus de Luigi Pirandello e Na Solidão dos Campos de Algodão.

Acabei optando pelo segundo.

Minha formação artística foi pautada, desde o princípio, pela busca de uma expressão focada no corpo. Aos poucos fui percebendo que a palavra ficava presa na garganta e quando saia, não tinha o tratamento artístico necessário para compor, junto com o corpo, um todo harmonioso.

Decidi então encarar as palavras e não encontrei nada melhor que a obra de Koltès para isso. Apesar da complexidade dramaturgica de Na Solidão dos Campos de Algodão, resolvi encarar essa obra, motivado pelo fascínio em relação ao poder da palavra em Koltès.

Palavra que não é só discurso, mas arma de ataque e contra –  que caracteriza as relações de deal, relações humanas motivadas pelo comércio e desprovidas de qualquer afetividade. Relações cerebrais, ou melhor, maquinais.

Além disso, havia também o desejo de se trabalhar com a distância real entre os atores numa encenação. Todos os meus trabalhos anteriores haviam sido encenados em espaços muito exíguos e intimistas até então, comecei a sentir necessidade de experimentar outras espacialidades como aluno.

Problematização dramaturgica

A partir desse momento, comecei a me perguntar Será possível encenar essa dramaturgia?

E pensava Sim, outros encenadores já o fizeram!

E esbarrava na questão fundamental desse projeto: Como?

Como encenar uma dramaturgia tão contemporânea e, ao mesmo tempo, tão estruturada a partir de modelos clássicos? Como encenar um diálogo que não se parece com diálogo, mas talvez um encadeamento de monólogos e solilóquios? E quem são esses personagens que não sabemos de onde vêm, nem para onde vão, mas que devem ir?

Se um espetáculo é uma reunião de signos e um signo pressupõe estreita relação entre significante e significado: aquele que significa, significa para alguém, e é por isso que me pergunto:

– Como fazer com que um texto praticamente literário se torne ação aos olhos do público? E como tornar um texto marcado pela ausência de uma ação propriamente dramática, instigante para quem o assiste ao ser encenado?

Uma das respostas encontradas para essa pergunta tem a ver com o conflito de Na Solidão dos Campos de Algodão, pois o conflito nessa peça, a despeito de seu aparecimento tradicional, não é quem faz com que a ação dramática se desenvolva, mas ao contrário, ele aparece como um agente que a paralisa e, em função desse impasse, ninguém sai do lugar, nem a situação, nem os personagens.

Se por um lado encenar Na Solidão dos Campos de Algodão é como adentrar num labirinto escasso de referências do autor, por outro, a riqueza do jogo das palavras, a beleza das imagens e o poder de refutação disso que se constrói, a partir dos monólogos e solilóquios dos personagens, me faz acreditar que tal obra é extremamente viva e, diferentemente da literatura, só se completa no momento em que as palavras saem do papel, graças aos corpos dos atores e, ao saírem deles, se harmonizam com a tensão existente entre o tempo e o espaço. A dramaturgia de Na Solidão dos Campos de Algodão pressupõe percurso, vivência.

Procurei ter em mente, durante as pesquisas necessárias à elaboração desse projeto, a seguinte questão: Devo me colocar diante do texto de Koltès buscando em sua trajetória de vida os elementos que irão me inspirar a encená-lo ou devo ouvir o que o texto me diz e seguir a essa percepção?

Dessa forma e me posicionando diante dessa pergunta, decidi recolher os pedaços de Koltès espalhados por aí, de modo a reuni-los no campo de significação dessa montagem. Para isso foi realizada uma pesquisa biográfica sobre o autor com o intuito de tentar compreender de que maneira ele inseriu suas experiências pessoais na dramaturgia de Na Solidão dos Campos de Algodão.

Por outro lado, essa pesquisa não tinha como objetivo reunir elementos para se desenvolver uma encenação à maneira de… Mas sim, promover a produção de uma encenação híbrida, encenação que dialogasse com o autor a partir sensações e motivações que a leitura da peça causa em mim.

Sendo assim, procurei associar o mergulho na obra de Koltès com uma fala do antropólogo Gilberto Dupas:

A auto-exaltação desmesurada da individualidade no mundo contemporâneo do espetáculo implica a crescente volatilização da solidariedade, equivalendo a uma postura de cada um por si em um mundo sem Deus. (…) Resta às subjetividades a possibilidade de extração do gozo no outro, cenário ideal para a explosão da violência, o racismo, a pretensão de ser melhor ou de funcionar como predador do corpo do outro. No limite, trata-se da eliminação do outro, percebido como obstáculo à concretização do desejo do sujeito. [1]

Dentro desse quadro niilista em que nos encontramos atualmente, difícil é não sucumbir ao desespero ou à esquizofrenia. No texto de Bernard-Marie Koltès parece-me que os personagens exemplificam bem essa questão e estão sujeitos a um processo de civilização ao contrário.

Se por um lado a linguagem falada é um luxo dos seres humanos, em Koltès, parece-me que essa especificidade atinge seu ponto máximo de saturação e, dessa forma, faz com que não reste aos dois personagens da peça outra coisa a não ser a barbárie.


[1] DUPAS, Gilberto. Tensões Contemporâneas Entre o Público e o Privado. São Paulo: Paz e Terra, 2003. Pág. 46-47.

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